Trecho do livro O Encontro Marcado de Fernando Sabino.
— “MUNDO, mundo, vasto mundo”!
— “Grito imperioso de brancura em mim”!
— “Meu carnaval sem nenhuma alegria”!
De súbito, um deles sugeriu:
— Vamos subir no Viaduto?
Hugo era o mais ágil: galgava o parapeito com presteza, corria
sobre a estreita fita de cimento, a trinta metros do solo, como se
andasse em cima de um muro. Curvado, subia o grande arco que se
elevava, abrupto, sobre a própria amurada. Eduardo subia do outro
lado. Lá em cima se encontravam, equilibristas de circo, passavam um
pelo outro, vacilavam, ameaçavam cair. Mauro ainda não tivera
coragem; os dois se sentavam na viga de cimento armado suspensa no
espaço, balançavam as pernas no ar, gritavam para ele:
— Sobe, carcamano!
— “Mijemos em comum numa festa de espuma”!
Naquela noite Mauro se animou a subir. Quando se viu largado
no vazio, tendo sob os pés apenas meio metro de cimento e lá embaixo,
muito embaixo, os trilhos da estrada de ferro a brilhar, um trem
passando exatamente naquele instante, não resistiu à vertigem. Deitou-
se de bruços, agarrou-se com força, dilacerando as unhas na superfície
áspera, pôs-se a chorar:
— Não desço mais. Pelo amor de Deus me tirem daqui. Chamem o
Corpo de Bombeiros!
Era extraordinário que a brincadeira imprudente não terminasse
em tragédia. E se repetia porque (rezava a tradição) um poeta (um
grande poeta) havia feito aquilo antes, para se divertir. Anos mais tarde
Eduardo lhe perguntaria se era verdade e o poeta haveria de confirmar:
— Parece difícil, mas não é tanto, você não acha?
No seu tempo, subia às três da tarde, depois de tomar apenas um
copo de leite, pour épater les bourgeois. A nova geração procurava
imitá-lo nos versos e nas proezas, mas precisavam beber para criar
coragem.
Alguém soltou um berro. Era Zaratustra:
— “É preciso um grande caos interior para parir uma estrela
dançarina”!
— Que Nietzsche, que nada!
— E daí? Só porque você não leu?
— Então soletra ao menos o nome dele, se você é capaz.
— Nietzsche também nunca leu Nietzsche.
Encharcados de literatura, pelas ruas da cidade.
<3
🙂