Soraia Vasconcelos – Crônica do livro Afinidades
A cidade nasceu geométrica, projetada na exata medida de ângulos, retas, paralelas, diagonais. Tudo calculado e nomeado na planta original da Comissão Construtora da Nova Capital. Passados 120 anos da inauguração, o previsto e imprevisto se esbarram no cruzamento de ruas e avenidas. Curiosa geografia desenhada pelos homens e pelo tempo.
Amazonas nasce na Bahia, na Praça da Estação. Segue seu curso de rio extenso e, na altura do Bairro Prado, encontra-se com Rio Negro. O afluente deságua e o trânsito vai caudaloso, transbordando como que em permanente temporada de cheias.
Bahia é porto seguro para Álvares Cabral, na Praça Afonso Arinos. Mas é Cristóvão Colombo que vai dar com Brasil, na Praça da Liberdade. Santos Dumont, inventor do avião, desembarca na Praça da Rodoviária.
Aimorés com Espírito Santo. A tribo vivia no Norte daquele Estado e no território imaginário de Belo Horizonte tem mais companhia: os Guaranis, por exemplo, vão se juntando aos Tupis, Tamoios, Carijós, Tupinambás, Caetés, um quarteirão depois do outro.
Na Floresta, um nó no mapa de Minas. Salinas, cidade do Norte, cruza com Pouso Alegre, que fica no sul. No Sion, improvável junção de terras geladas, dos extremos do mundo: Patagônia com Groenlândia. No Bairro Santa Lúcia, a Rua Júpiter atravessa a rota da Avenida Terra.
Harmonia mesmo é no Santo Antônio. Pitangueiras e Mangabeira, como nos velhos quintais. E na Pampulha, a estação das flores é permanente: Flamboyants com Ipê Amarelo; Acácias com Latânias.
O bairro de Lourdes é cenário para romances da época da Inconfidência: Alvarenga Peixoto abraça a mulher dele, Bárbara Heliodora. O poeta Tomás Gonzaga e sua amada Marília de Dirceu estão bem pertinho. Mas, de novo, não se encontram. Separados pelo degredo no século XIX e, agora, pelo desenho da cidade republicana.
Do Império, um registro no bairro do Padre Eustáquio. Dom Pedro II e Vila Rica. O Imperador visitou a antiga capital de Minas Gerais. Hoje, poucos passos adiante, Pedro II reencontra Henrique Gorceix, responsável pela fundação da antiga Escola de Minas de Ouro Preto.
Na região hospitalar, colóquio médico: Alfredo Balena e Ezequiel Dias. Contemporâneos na cidade dos primeiros anos do século XX, juntam-se em um cruzamento próximo à Faculdade de Medicina da UFMG, da qual foram professores.
Negócios de Estado e luto oficial no encontro de Afonso Pena e Getúlio Vargas. Ambos morreram no exercício do cargo, em meio a crises políticas. Afonso Pena estava inscrito na planta desde o início. Vargas entrou no mapa depois do suicídio.
Conversa mais amena lá para os lados do São Lucas. Camões e Cervantes. A epopeia portuguesa e as andanças do cavaleiro espanhol. Um clássico híbrido nas ruas da capital.
Aliás, faltam mais esquinas literárias em Belo Horizonte. Imagine o endereço: Carlos Drummond com Pedro Nava, um café memorável! Ou um encontro marcado na esquina de Fernando Sabino e Otto Lara Resende. Clarice Lispector com Cecília Meirelles seria cruzamento de palavras poéticas e instigantes. E, quem dera, a confluência de Machado de Assis e Guimarães Rosa, com muitos bancos à sombra das árvores para a gente tomar fôlego, divagar, desbravar o próprio sertão.